sexta-feira, 1 de janeiro de 2010

Capítulo 1

O aeroporto Sá Carneiro é um vaivém desenfreado cheio de pessoas que partem e que voltam, um local de despedidas e de reencontros. Vislumbram-se choros incontrolados por parte de quem não aguenta um encontro ou uma despedida.
Desta corrida alucinante um dos muitos aviões aterra para dar alegria a quem tanto o esperou. Uma jovem rapariga ultrapassa a porta de saída do aparelho e entra em contacto com o frio invernal, respira fundo e recebe tranquilamente estas boas vindas do seu país.
Desloca-se e caminha calmamente nas escadas de desembarque não passando despercebida aos múltiplos olhares que a rodeiam. Ao contrário de muitas pessoas esta jovem está só, tinha tomado essa decisão antes do embarque, ainda em França.
Depois de todas as formalidades no interior do edifício abandona-o sorridente. Despreocupada entra num táxi e pede que a levem para a cidade invicta, o Porto.

No sabor da velocidade do veículo Graciete contempla pela janela o céu cinzento e sente o seu abraço frio que contraria o seu íntimo, ela está feliz.
Ao entrar na grande cidade uma onda de saudade inunda-a, está tudo tão diferente as ruas mudaram, novos edifícios foram construídos, no entanto, o calor das pessoas portuenses continua.
Não vê a hora de chegar a casa, está exausta e precisa de descansar para o dia seguinte.

Chega à rua onde a viu crescer, entrar na rua do Heroísmo é como entrar em casa.
Num pequeno gesto, Graciete inspira e roda as chaves. Ao "clic" abre a porta e entra. Um cheiro a mofo paira pelo ar, tudo permanece no sítio desde a última vez que lá esteve, mas uma camada de pó ofusca o brilho de tudo.
Pousa as malas no chão, distingue o sofá coberto pelo lençol, e num impulso senta-se nele, ao mesmo tempo, levantam-se pequenas substâncias poeirentas reluzentes à luz solar que entram pelas brechas da persiana corrida.
Apesar do cansaço Graciete vai buscar forças à sua felicidade e destapa todos os móveis e limpa, sem perder muito tempo, a casa. A noite será de descanso.

Acorda de manhã cedo cheia de energia, afinal ela tinha vindo para a terra a trabalho. Faz um café, abre a janela e fica a observar. A brisa fresca da manhã bate suavemente na sua cara, o sol está esplendoroso.
Olha para a rua e vê crianças ainda sonolentas de mochilas às costas e os pais atarantados cheios de pressa. A carrinha do Pão - Quente chega e o trânsito já se forma. Na esquina encontra-se o que tanto a delirava ainda em criança, o Museu Militar. No terraço ainda se encontram os tanques de guerra e os canhões.
Graciete não pode deixar escapar aquela beleza da manhã, pega na sua máquina fotográfica e tira a primeira fotografia desde que chegou.

Arranja-se, prepara o seu material e parte para os últimos preparativos para iniciar o seu trabalho.

Pela rua, tem na sua cara estampado um sorriso, observa as casas e prédios, o tempo passou e como marca disso, é visível o desmoronar de muitos edifícios. Chega à rua que já era página da sua vida, a Rua Firmeza.
A cada passo que dá sente a dor de barriga que causa mau estar, como se fosse o seu primeiro dia de aulas. Recorda aqueles dois passeios cheios de grupos formados por alunos, todo um borborim que enche a rua. Mas desta vez algo está diferente, um vazio, um frio se sente.

Fica parada a olhar para um edifício vazio e triste. Os portões estão fechados e a tinta a sair, as janelas ainda deixam transparecer a desordem causada pela mudança, as ervas daninhas invadem o seu interior despreocupadas, pois ninguém as controla mais. Graciete não acredita e dos seus olhos transparece a infelicidade.

Num impulso espontâneo agarra-se aos portões e abana-o com esperança que este se abra. Os portões abrem-se. Instintivamente recordações passadas naquele velho edifício vêm-lhe à memória e numa corrida contra o tempo vive esses momentos.

Entra, sente-se solitária tal como na primeira vez que entrou. Olha para as marcas que em tempos fizeram-na sentir segura da sua escolha. As letras de ferro cravadas na fachada que diziam "Escola de Artes Decorativas Soares dos Reis".

Pela segunda vez fica com medo, um medo diferente, não por aqueles que frequentavam a escola, mas por ausência deles. Os bancos desconfortáveis ainda ali estão. Está frustrada, nem sequer teve a oportunidade de se despedir e agora irá fazê-lo indefesa de emoções.

Ainda na entrada, inspira, recorda o cheiro doce e gostoso vindo do bar. Incontrolável, deixa-se ir como se fosse atrás do mais apetitoso bolo. Lembra-se da fila longa que se fazia até chegar à simpatia das funcionárias. Passa a mão pelo balcão gasto onde muitos ficavam à espera de serem servidos. Do espaço vazio revive as mesas e cadeiras onde teve inúmeras conversas ao som mudo da televisão ligada na RTP1. Era uma mistura de sons entre os alunos, a louça e o roncar frenético da máquina do café. A parede que expunha os trabalhos dos alunos estava nua. Nada estava lá.

Sai e dirige-se para o corredor central e fica parada a olhar para o seu vazio. Olha para a sua esquerda e encontra as escadas que tantas vezes subiu. Não resiste e sobe-as novamente, passa a sua mão no corrimão gasto e cheio de pó, mas não se importa e recebe o seu contacto com carinho. Ao chegar ao cimo das escadas dá de caras com a porta da sala mais silenciosa de toda a escola onde as letras se tornam sábias, a Biblioteca.
Entra e viu-se com 15 anos a entrar pela primeira vez naquele espaço a preencher o nome no livro, dirigir-se a uma das muitas estantes, a pegar num livro e sentar-se a ler. Não só lia como também ia fazer trabalhos de pesquisa nos poucos computadores disponíveis sozinha ou em grupo que por uns momentos aquele espaço tornava-se numa autêntica assembleia em que cada um defendia a sua ideia, mas quando os ânimos se exaltavam de mais ouvia-se um “chiu” produzido pela funcionária atenta. Por vezes, ia lá simplesmente ver um filme nos seus tempos livres.
Foram actos que repetiu vezes sem conta e agora fazia-o novamente, mas em pensamento.

Não aguenta todas estas emoções e sai daquele espaço e agarra-se ao corrimão da escada procurando consolo.
O ténue sol entra pelas janelas iluminando todo aquele espaço.
As escadas continuam até ao último piso. Não as sobe, não quer subir mais no seu sofrimento prefere continuar o caminho no piso em que se encontra, pois os momentos mais importantes encontram-se nesse andar.
Desloca-se calmamente com o coração aos pulos, está muito perto da sala onde teve a melhor aula de desenho nos 3 anos que lá andou.
Uma turma nova, olhares sorrateiros de uns para os outros e uma professora com uma personalidade muito forte.

Como primeira aula o ambiente devia ser descontraído e melhor do que começar a manhã a ouvir música clássica.
Uma longa folha de papel de cenário cobriu o chão e nela todos os alunos escolheram o seu espaço depositando o contorno do seu corpo.

Graciete na sala vazia sentou-se no chão da mesma forma como uns anos antes. Fecha os olhos e recorda-se da música clássica, lentamente com o indicador toca no chão e num impulso faz o seu contorno novamente ao som da música, mas num chão empoeirado para depois ser apagado pelo tempo. A música acaba, juntamente com a união dos traços e sem olhar para trás abandona o seu vazio, o seu silêncio.

O corredor estende-se aos seus pés e imploram pela sua passagem, as portas se abrem para mostrar as suas recordações. Graciete entra na sala 4 onde viveu os momentos mais engraçados, mas também os mais sérios. Sorri pela primeira vez e com alegria espreita o seu conteúdo.

Recorda o olhar intenso e culto que esconde nas suas profundezas o mais profundo do seu ser tão negro como a roupa que trás vestido. Para contrariar o seu rosto expande o seu espírito jovem com um sorriso matreiro, mas é no fundo o que o torna tão querido e o que fascina as jovens alunas. Esta é a primeira impressão que recorda do seu professor.

Sentada no corredor esperava pelo professor que normalmente chegava dez minutos após o toque de entrada. Este encontrava-se normalmente num estado mil vezes pior que o dos alunos e para começar a aula dizia sempre uma dose de disparates que na realidade até eram verdadeiros e tinham a sua moral. Passado meia hora deste serão, lá começava ele a dar a matéria.

Foi ali naquela sala no seu último ano lectivo e no último dia de aulas que ela e a amiga fizeram a maior loucura durante os 3 anos naquela escola. Escreveram um texto surreal ao som das palavras do professor. Viu-se a ela e à amiga a rir-se tentando ambas suster o riso a custo enquanto a turma e o professor olhavam para ambas sem conseguirem perceber o que originou aquele riso. E elas ao verem as caras sérias de todos ainda se riam mais.

Graciete riu-se mais uma vez e dialogou o texto:
“Isto é surreal!
Isto é uma tolice, grande seca, parece que
estamos na seca da aula do fundo
seca, pois tirando os olhares constantes para
algo negro nos rodeia e ficámos mais distantes.
rodeia, beleza pura riso com riso de criança mas com
corpo cheio de sangue encontrei na floresta numa noite de luar.
Noite, boa conselheira ela é, com sonhos belos e
proibidos, estávamos de entrar no sótão, pois lá guardava um segredo.
Segredo, bem fechado é amor guardado. Que loucura de
olhar radiante cheio de luz que nos penetra no interior.
Penetra, loucamente atingindo até ao limite do
prazer tive naquela noite, onde nós os dois podemos sentir a dor.
Dor, se for com jeitinho pode ser que não só depende
do entusiasmo conseguimos a obra de arte.
Arte, tudo é arte até a junção de dois corpos a
envolver-se na solidão do meu quarto onde elevei os meus pensamentos.
Quarto, decorado com bonequinhos é o que tá a dar
hoje, acordei bem-disposta!”
Coisas da juventude.

No fim, ainda tem tempo de recordar um dos muitos momentos divertidos do seu professor. O dia em que ele recorda de quando era pequeno pegar na raquete de ténis e fingir ser guitarrista. Solta um sorriso enorme, lembra-se perfeitamente da expressão dele, fecha a porta já sugada pela saudade.
A próxima sala foi onde se refugiou no trabalho. Não se sentindo muito à vontade para conversar dedicava-se ao máximo nos seus afazeres. Afinal, o computador sempre foi o seu grande vício e aprender novos meios de comunicação sempre a cativou.
Graciete continua, não está satisfeita. Quer ver os cantos mais significativos pela última vez.

Os seus passos entoam no corredor vazio, decide continuar a caminhada descendo as escadas.
Quando alcança a porta do lado esquerdo dá de caras com a entrada para a sala de têxteis e observa os teares parados a cozerem o tempo que os abandonou.
Por ali passou pouco tempo, apenas se lembra dos movimentos básicos de entrelaçar a linha que uma jovem e simpática professora lhe ensinou. Mas sabe o quão cansativo é trabalhar nos teares e quão divertido é escolher a combinação de cores perfeita no meio de dezenas de novelos de lã.
Ao lado encontra-se mais duas salas, numa delas teve a sua primeira aula de desenho.
Parece que foi ontem, Graciete volta a sentir o medo que tinha perante a professora. A sua pose fazia dela uma pessoa autoritária, mas quando começava a falar da beleza da Arte e como as coisas simples podem ser belas, fazia dela a pessoa mais fascinante que Graciete conheceu.
Desvia o seu olhar e continua o caminho pelo longo corredor. Quer alcançar a sala que lhe abraçou e que lhe concedeu o gosto pela fotografia.

Pelo caminho olha para o lado de fora das janelas, lembra-se de todo aquele espaço aberto preenchido de alunos.

Entretanto, passa pela sala de vídeo. Aqui foram feitos grandes filmes e talvez cineastas, também ela teve a oportunidade de gravar uma fita de vídeo e gritar "Acção!".

Ainda no corredor, Graciete pára nas últimas janelas. Foi ali que fez a sua primeira fotografia Pinhol. Está a uns passos de voltar a entrar no local onde passou mais horas e onde dedicou o melhor de si.
Ao contrário do que sempre ocorria a porta está encostada sem o trinque que impedia de ser aberta. Empurra-a e com este seu esforço apercebe-se que com o passar do tempo o seu ranger tornou-se mais forte, ao mesmo tempo que a ultrapassa pergunta-se como é que todas as portas podem estar abertas.

Sente a falta dos estranhos objectos, do qual passou muito tempo a olhar para o seu encanto que a fascinava pelos seus longos anos.
Dirige-se ao estúdio de fotografia e num "flash" recorda as suas primeiras e poucas experiências fotográficas sempre em fundo preto e com os poucos focos de luz que funcionavam. O espaço é dividido apenas por uma cortina que divide o estúdio de uma pequena sala, apenas com uma mesa onde aprendeu os conceitos básicos da fotografia, com um professor capaz de responder aos alunos com o seu olhar. Estava sempre bem-disposto e com cara de brincalhão, mas era com este ar que ele conseguia aprisionar atenção dos alunos.

Olha para o estreito corredor e encontra a banca onde se fazia a revelação dos filmes fotográficos. Preparavam-se as tinas, os recipientes, os químicos, a agitação, dava-se os tempos passava-se por água e no fim punha-se os filmes a secar no estendal. Era um processo lento e paciente. Este desenrolar tinha como paisagem um edifício abandonado do outro lado da rua.

Graciete chega à banca e abre a torneira, não com o intuito de ver a água a correr, mas para sentir o que temia:
- Não acredito! -disse num sorriso. Com este seu gesto o manípulo fica preso na sua mão tal como aconteceu no seu tempo.
Corre a porta que dá para o corredor dos laboratórios, entra e fecha-a, liga as luzes vermelhas e fica impressionada, ainda existe vida no edifício por muito frágil que seja. Está diante de quatro laboratórios, mas apenas dirige-se para o que é mais significativo para si.

Abre uma das portas do laboratório e ao fazê-lo sente um cheiro ácido e intenso. Vê as bancas de metal que contém alguma ferrugem. Liga a luz e assim fica encostada à porta observando em lembranças o dia mais feliz.

Só à luz vermelha se fazia as fotografias, mas naquele dia Graciete ia fazer uma diferente, uma especial.

Fez a ampliação no projector, queimou o papel, de seguida mergulhou-o no revelador e a magia aconteceu. Os traços formaram-se, podia ver a pormenor cada parte do rosto do seu amor.

Com a pinça passou pela água e por fim pelo fixador e fixou-se a olhar para a fotografia.

Sem dar conta o amor de Graciete encostou-se a ela. Agarrou-se à sua cintura com medo de a perder, beijou-lhe o pescoço num beijo doce. Sentiu o seu cheiro misturado com os químicos, um arrepio percorreu-a, aquele momento podia ser um sonho. Ela voltou-se para ele, olhou-o nos olhos, passou os seus dedos pela sua boca e sentiu o desejo. O beijo que ela tanto desejou deu-se. As bocas unidas sentiam algo especial. As línguas aproximaram-se, queriam sentir o prazer da sensibilidade. Como foi aquele momento longo e duradouro. Sem ar terminaram, porque faltou-lhes, mas nada acabou. Indecisos, trocaram pequenos beijos rapioqueiros. Com determinação ele pegou nela, afastou o conteúdo da mesa e sentou-a. Todo o ambiente era propício a luz, o calor e a louca vontade.

Graciete conseguiu voltar a sentir as mãos dele que lhe moldaram todo o seu corpo e ela ardentemente o beijava. Estavam doidos, sem consciência de que não seria o local certo. Mas mesmo assim continuaram e na loucura o desapertar da blusa dela, até ao momento que ouviram um barulho.
O mesmo barulho que fez Graciete voltar à realidade. Sobressaltada sai dali com a mesma rapidez que ela e o seu amor se arranjaram com medo de serem descobertos.

Foge na direcção da sala onde era dada a teoria de fotografia, mas a correria termina quando esbarra contra o primitivo ampliador.
Entra no pequeno espaço para se refugiar do que a afugenta. Ao contrário da anterior esta não continha apenas uma mesa, por sua vez, esta encontra-se ampla, com as mesas sujas e os estores fechados. Sente-se mal e sai.

De volta aos corredores em que o tempo cessou vê armários partidos, lixo pelo chão vestígios de um ciclone provocado pela mão humana.

Numa das salas por onde passa ainda tem mesas com aspecto novo, mas pelo chão encontram-se folhas perdidas em que os alunos depositaram nos seus traçados um pouco da sua alma. No quadro está escrito "Adeus escola" estas são as últimas palavras deixadas por alguém que partilha do mesmo sentimento que ela.

Encosta-se a uma das paredes do corredor e lentamente desliza o seu corpo para o chão. Sentada absorve o cheiro a mofo, vê as árvores a perder as suas folhas pelo vento que as arranca.

Recorda o seu mau humor quando fazia aquele trajecto para o piso superior na direcção de mais uma aula de moral e não de desenho como constava no horário escolar. Eram abordados todo o tipo de assuntos desde a revolução de estudantes de Maio de 86 na França, da indecência do estatuto do aluno, na injustiça de ter que trabalhar até aos 65 anos, na reforma antecipada, estar 90 minutos a falar de assuntos da direcção de turma e principalmente num assunto que levantou vários dias de discussão por causa da colher de pau. Tudo tinha interesse, tudo menos o que realmente interessava desenvolver as técnicas do desenho.
Também foi nessa sala que teve as piores aulas de português. A professora era incrível falava num tom arrastado e lento fazia imensas pausas e quando recomeçava já não se lembrava do que tinha dito anteriormente, os alunos eram a sua memória. Para além disso, tão depressa estava a falar de uma coisa como a seguir de outra. O primeiro teste do ano que essa professora lhe entregou o que teve de estranho teve de cómico. O texto que ela e os seus colegas de turma tinham que analisar era em brasileiro, tudo indicava que a aula era de português, mas naquele dia o português abrasileirado foi a excepção.

Desperta, da recordação recente, uma vez mais dá início à caminhada.

Desce as escadas que dá para as oficinas e a cada degrau que deixa para trás deixa também a sua marca. De portas abertas está a oficina de madeiras. Ainda dá para sentir o cheiro da madeira misturado com o verniz e o diluente. O som da serra cessou com o desligar de um simples botão.

Ao lado encontra-se a oficina de serigrafia. Os cheiros ácidos das tintas ainda se sente, nas paredes ainda é visível os salpicos de tinta, mas as grandes máquinas desapareceram, apenas resta a desordem.

No corredor encontram-se os cacifos, abertos ou estroncados, mas cada um personalizado pelo seu dono. A arte de marcar território continua.

Na oficina de metais um tom escuro preenche todo o espaço. As grandes máquinas foram arrancadas e no chão apenas resta os buracos que as prendiam e por companhia folhas e mais folhas forravam-no. Os estores estão completamente destruídos e as mesas tiveram outro destino. Graciete com ar assustador pronuncia a frase mais comum: - Meu Deus!

Por fim, entra na última oficina, a de cerâmica. Ao olhar para os cabides relembra as batas sujas amontoadas umas em cima das outras, agora só resta o seu local.
Entra num espaço desocupado e repara nas prateleiras altas que ainda continha algumas peças. Graciete observa:
- Não, não pode ser! -diz ela depois de ter reparado na peça que fez. Pega numa cadeira que estava a um canto, sobe-a e retira a sua jarra de barro no meio de uma repugnante camada de pó e de teias de aranha. Sacode e relembra os dias em que criou aquela peça.

Criou-a no papel, fez a maqueta e depois começou a dar forma no barro. Sentir aquela pasta nas mãos deu-lhe um poder incrível, tudo podia ser feito. Graciete contente pelo seu achado imprevisto abandona mais um espaço com o seu pertence.

Pelo corredor desvia-se de todas as mágoas e problemas que muitos deixaram para trás. Nas escadas que sobe encontra algumas esculturas partidas deixadas em caixotes.

Já no corredor principal olha-o em toda a sua extensão, as vitrinas deixaram o seu espaço e apenas ficou os caixotes de lixo. Da pequena sala de professores resta apenas os cadeirões cobertos de pó, tal como as estantes.

Á frente encontra-se a sala mais desconfortável, onde bancos e mesas estão riscados e partidos, a sala do anfiteatro. Graciete ainda se lembra da aula de imagem e som em que todos tiveram de limpar a sala devido ao seu estado caótico de lixo. Hoje não se encontrava muito diferente.

Por infelicidade, também ali teve aulas de História, o lado bom é que as aulas compensavam o mal-estar, excluindo um dia da semana que toda a turma estava sempre de rastos pelo excesso das aulas mais cansativas acumuladas, assim como a perspicácia da sua professora.

No silêncio de todo o ambiente fantasmagórico, Graciete continua.
A sala 1 está vazia com excepção de uma placa de homenagem. Nos laboratórios de físico-química apenas as bancas restam suportando o peso de caixotes, garrafas e frascos de vidro.

Graciete avança em direcção ao recreio, passa pela papelaria e reprografia, as suas portas estão fechadas.

A passagem pelo recreio é temporária. Apenas para observar os grafites que ainda marcam a presença da arte, o painel em relevo que mostra a paisagem do Porto e a lembrança do convívio que ali se fazia sentir assim como os vícios artísticos e de dependência. Resta apenas o ginásio onde a solidão é maior, nem as lembranças das festas e das suas aulas de educação física conseguem preencher este sentimento. Ao sair do pavilhão para o exterior ouve:
- É triste ver este espaço assim neste estado.

Encostado à árvore, um sujeito vestido de preto pronuncia estas palavras.
- Mas...
- Como foi que entrei?
- Sim.
- Da mesma forma que tu! Quando entraste na escola já me encontrava aqui dentro, mas como ias tão concentrada nos teus pensamentos não me viste.
- Então aquele barulho...
- Sim! Foi provocado por mim, mas sem querer! -disse o estranho a sorrir - Sabes, não podes estar aqui! Este espaço está fechado ao público.
- A sério? Então porquê que estás aqui?
- Porque não sou qualquer um, também não tenho que te dizer ao que vim, mas se os portões estão abertos é porque posso entrar, porque fui eu que os abri!
- Então porquê que me deixaste entrar?
- Porque frequentaste esta escola.
- E como sabes? Podia ter curiosidade e entrar! -responde Graciete
- Não estavas com cara disso! Mas sim com saudade, vi pela forma como te agarraste ao portão! E pela jarra de barro que tens na mão. - Sim, realmente frequentei esta escola à alguns anos atrás! Não o incomodo mais e peço imensa desculpa por ter entrado sem autorização
- Por esta passa, estás desculpada! -diz o desconhecido a sorrir.
- Boa tarde! -diz Graciete
- Boa tarde!

Graciete sai do recinto escolar. Encosta-se ao portão e agarra-se a ele, não consegue conter-se e chora. Decidida volta as costas ao grande e centenário edifício.
O desconhecido observa toda a cena e também ele olha com tristeza. Agarra no portão e sente as lágrimas lá deixadas ao mesmo tempo que o tranca. Entra no carro e arranca sem olhar para trás.

Na rua, a jovem pensa sobre tudo, nada fazia sentido, mas ao mesmo tempo tudo batia certo.

Já em casa ela pega no álbum de fotografias que tirou no tempo de escola e revive novamente os velhos tempos.

No início da tarde, Graciete marca os números e espera que alguém atenda. Uma voz feminina faz-se ouvir:
- Escola Secundária Artística Soares dos Reis, boa tarde.
- Boa tarde! Gostaria de falar com um funcionário ligado à secretaria, se possível!
- Sim! Vou estabelecer a ligação, aguarde um momento!
Graciete aguarda e ao fim de alguns minutos ouve-se:
- Boa tarde, em que posso ser útil?
- Boa tarde, daqui fala Graciete Avelar.
Fui convidada pela escola a fim de ser professora de fotografia no vosso estabelecimento.
- Aguarde um momento para ver no sistema a sua situação e para puder dar as informações necessárias.
- Sim! Com certeza.
- Pode dizer novamente o seu nome? -pergunta a funcionária.
- Graciete Avelar.
- De facto foi convocada pela escola para substituir um professor, mas ainda falta uns últimos acertos a nível do contrato, do horário bem como do salário.
- Sim é verdade! Hoje encaminhei-me para as vossas instalações, mas dirigi-me à escola Soares dos Reis na rua Firmeza e aí fui informada que mudaram recentemente e como não contenho a morada exacta não sei como devo dirigir-me.
- O novo estabelecimento encontra-se na Rua Major David Magno… pode passar por aqui amanhã de manhã pelas 10 horas!
- Com certeza! Continuação de uma boa tarde!
- Obrigada e boa tarde! -finaliza a funcionária.

No fim da chamada, Graciete sai para ir às compras, nada melhor que ir ao comércio da Baixa. Com ela leva a sua eterna companheira, a máquina fotográfica.
De caminho directo ao Mercado do Bolhão Graciete passa pelo romântico Jardim de São Lázaro e pelo antigo convento de Santo António da Cidade, agora transformado na Biblioteca Municipal do Porto. Como não pode deixar escapar, fotografa o maravilhoso jardim e a famosa fachada barroca da Biblioteca.

Aproveita a passagem e vê os cartazes de espectáculos no Coliseu do Porto, pode ser que mais tarde passe por lá para assistir.
De repente, Graciete entra na rua Santa Catarina no meio da multidão e com uma fotografia regista este momento social. Na esquina entre a rua do Coliseu e Santa Catarina encontra-se o já ex-líbris, Café Majestic. Ninguém fica indiferente à sua fachada imponente de mármore, decorada com motivos vegetalistas. É considerado um local para pessoas de alta classe, pois o seu luxo interior convida as várias personalidades do mundo artístico e cultural que por ali passam.

Seguem-se as lojas que já são história daquela rua. A primeira é a da Zara é uma marca característica de Espanha, mas ainda se mantém, assim como no Via Catarina onde passou muito tempo.
Mas Graciete não quer ver montras precisa de encher a sua despensa com alimentos frescos.

Na esquina da rua do Bolhão, os mais de 10 mil belos azulejos azuis e brancos da Capela das Almas estão mais bonitos, depois da restauração. Por trás da capela Graciete repara num espaço novo, apercebe-se que ali nasceu mais um centro comercial.

Já à porta do mercado do Bolhão Graciete começa a sentir o cheiro dos legumes frescos. Entra e vai até à varanda, fica a observar a arquitectura neoclássica daquele mercado tão especial que hoje se encontra um pouco degradante. Debruça-se por instantes e ouve alguns pregões.
- Quem quer pencas ó trinchudas! Merca, nabiças ó alhos!
- Faneca da boa!
- Faneca da linha!
- Amoladores de tisoiras ó nabalhas! Compor loiça ó garda-sóis! Louça fina p’ra compor! Deita gatos!

Não há dúvida, aquele mercado tem um espírito próprio. Ainda no piso superior, Graciete procura pela senhora onde a sua mãe ia sempre. Foi ao local e como era de esperar a senhora ainda lá se encontrava.
- Olá senhora Maria ainda por aqui?
- Olha quem ela é! Menina Graciete como tás crescida e bonita! É, ainda por aqui. Tem que ser.
- A senhora ainda me conhece? -pergunta a jovem.
- Atõn nõn? És a cara da tua mãe chapada. Como está a Amélia? Desde que foi para França que não sei nada dela.
- Está boa e com muitas saudades do Porto e do seu Bolhão -diz isto a sorrir – Está sempre a dizer que os legumes não tem o mesmo sabor como os daqui.
- Os nossos legumezinhos sõn muito bons e tenrinhos!
- E como andam as coisas?
- Olha minha menina, tá tudo muito fraco! Esta crise tá a pore toda a gente maluca! Este Sócratas cada vez mete mais o país na desgraça é o que é minha filha. Quem paga as fabas é aqui o pobo. A gente mais pobre é que sofre.
- Mas está mal em todo o lado!
- Pois tá minha menina, mas Portugal cada vez tá piore! É só desgraças, olha eu cada bez bendo menus e pago mais. Olha- me só para estas obras, parece as obras de santa Engrácia! Tira logo muita clientela. Nõn tenho lucro nenhum, mas se deixo de trabalhar como é que bou biber? Tou a trabalhar para pagar as contas! É só para isso que trabalho!
- Pois é muito complicado realmente!
- E a menina? Tá por aqui a férias?
- Não, vim a trabalho! Vou dar aulas!
- Isso é que é preciso! Quem tem trabalho hoje que dei-a graças a Deus! Mas isso é muito bõm! Uma menina tão nobinha e já doutora!
- Doutora não, só professora! -diz a sorrir.
- A menina vai querer alguma coisa?
- Sim! Uns legumes!
Graciete escolhe os produtos que tem em mente e mais alguns que não consegue resistir.
- Bem até uma próxima! -despede-se Graciete.
- Até uma próxima minha menina! Mande um beijinho à sua mãe.

Desce as escadas para o andar debaixo, compra alguma carne e algum peixe fresco. Para colorir um pouco o seu astral, vai pelo corredor central e compra as mais lindas e frescas flores.

Já de mãos cheias de saco, Graciete mete-se a caminho de casa. O resto do dia é para fazer uma limpeza geral no seu lar.

O cheiro a mofo ainda paira pelo ar e Graciete quer sentir a casa perfumada e limpa.
Abre as janelas para deixar entrar o suave calor do sol, todas as divisões da casa ficam iluminadas. Tira tudo de cima dos móveis e limpa o pó, que durante anos se acumulou, procura o antigo aspirador, e por incrível que pareça ainda funciona, e suga tudo o que lhe aparece à frente. Os vidros são limpos, os tacos encerados, a casa de banho lavada, tudo ao som de Alice Cooper, R.E.M, Pink Floyd, Village People e Radiohead.

Exausta senta-se no sofá e descansa. A noite cai. Graciete prepara um jantar leve e entrega-se ao sono.

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