segunda-feira, 31 de janeiro de 2011

Capítulo 7

Graciete acorda mais tarde que o habitual, puxa a persiana da sala para cima, a claridade do dia invade todo o espaço, Célia acorda com o barulho.

- Bonjour, madame! -diz Graciete.

- Bon soir para ti também! Não sabes fazer menos barulho? -diz Célia ainda ensonada.

- Grande gueule de bois, ah! Maintenant, vous prenez un bain d'eau froide! Graciete pronuncia-se em francês de modo a conseguir irritar Célia.

- Olha lá, importas-te de falar em Português! Esse francês está a deixar-me tonta! Ei que estás a fazer?

Graciete pega na amiga pelo um braço e arrasta-a até à casa de banho. Abre a torneira de água fria e coloca dentro da banheira.

- Estás maluca? Queres que apanhe uma pneumonia?

- Tinha avisado, isto vai-te fazer bem.

- Ai agora já falas português?

- Oui!

Já desperta, Graciete deixa a amiga tomar banho descansada e de água quente.

- Despacha-te, também quero tomar banho, estou a precisar!

- Primeiro metes-me debaixo do chuveiro com água gelada e agora nem um banho descansada posso tomar? Que rica amiga que tu me sais-te menina Graciete. -responde com um sorriso.

- Arranjas-me umas roupas? Não gosto de tomar banho e vestir uma roupa já usada!

- Onde está a rica amiga agora? -Graciete ri.

Célia abre a cortina e num tom brincalhão faz beicinho e diz:

- Por favor, sabes que és a melhor amiga do mundo, não sabes Graci?

- Pois, esse beicinho continua o mesmo de sempre! Vá toma banho enquanto eu arranjo alguma coisa para ti!

- És um amor Graci!

Depois de um bom banho Célia deixa a amiga à vontade e vai preparar o pequeno-almoço já tardio. De repente ouve o seu nome:

- Célia!

- Sim Graci!

- Célia, isto não se faz.

- O quê que não se faz? Não estou a perceber, estás a tremer porquê?

- A água está fria, tu gastas-te tudo! E estou toda ensaboada.

- Eu? Pois realmente! Mas tu sabes que sou muito quente! Eu adoro a água a queimar.

- Pois e à custa disso agora tenho que tirar a espuma com água fria, sabias que posso apanhar uma pneumonia?

- É para veres como elas mordem, ainda há pouco não pensavas assim, meteste-me debaixo da água fria e agora tu queixas-te de uma coisa que faz bem. -Célia sorri.

- Maluca! Fizeste isto de propósito.

- Não, eu não fiz de propósito! Vá, pronto, talvez um bocadinho. Desculpas aqui a tua amiga, s’il vous plaît?

- Tu és única Célia!

Depois de se rirem com a situação vão para o sofá beber o chá de limão para repor as energias. Sem perder tempo Célia inicia a conversa.

- E tu, andas com alguém? Ainda não me contaste muito sobre ti.

- Achas? Não quero cá compromissos com ninguém, assim não estou impedida de viver a vida!

As duas entram numa brincadeira de cócegas por alguns minutos. Riem, atiram almofadas uma à outra, saltam em cima do sofá como duas adolescentes. Sentam-se cansadas por causa do esforço da brincadeira.

- Célia o que é isso?

- O quê? Não tenho nada! -Célia senta-se e solta o cabelo para tapar o pescoço.

- Que marca é essa no pescoço?

- Onde é que viste isso? Não tenho nada.

- Célia deixa ver o que tens!

- Não tenho nada já te disse Graciete não sejas chata.

- Se não tens nada então deixa ver! -Graciete tenta arrumar os longos cabelos de Célia, mas ela não deixa.

- Não faças isso, Graciete.

- O que se passa Célia? Como tens essa cicatriz? Existe algo que eu não saiba?

Célia mantêm-se calada encolhe-se e passa a mão pela marca.

- Foi um acidente, não quero falar nisso Graciete. -responde num tom decidido.

- Somos amigas à imenso tempo, eu conheço-te. Diz-me o que se passou para teres essa cicatriz.

- Não quero falar nisso, Graciete.

- Não sejas teimosa.

- Eu não quero falar nisso, não quero remexer em coisas que me custa. Estávamos tão bem Graci para quê estar a falar em coisas más. Não me faças relembrar tudo de novo. Onde é que estávamos mesmo? -pergunta Célia a sorrir.

- Não me faças isto, Célia. Tu és minha amiga não penses que vou deixar isto em branco. Eu não vou descansar enquanto não me contares. Não quero que se instale entre nós um mau ambiente…

- Graciete, isso é chantagem.

- Não, não é. Tu sabes que eu não descanso enquanto não souber o que se passou.

Célia sabia que o que Graciete dizia era verdade. Quer contar à amiga o que pouca gente sabe, mas tem medo. Graciete não é qualquer pessoa é a sua melhor amiga e sabe que pode contar com ela. Inspira fundo, e sente a coragem e o medo abraçados numa valsa renhida.

- Eu conto, mas não me interrompas. Deixa-me contar tudo seguido depois fazes as perguntas que bem entenderes. -Célia olha para a amiga e na vez da voz que espera ouvir vislumbra um aceno afirmativo.

Pega na sua mala e retira de lá um maço de cigarros. Tira um cigarro e num acto decidido acende-o e puxa a chama para trás para queimar a pólvora. Graciete observa isto e fica pasmada a olhar para amiga, nunca pensou que ela fuma-se.

- Tudo começou há um ano atrás. Eu conheci um sujeito. Sentimos logo uma atracção simultânea e pela nossa primeira conversa percebemos logo que tínhamos muitas semelhanças. Trocámos o número de telemóvel, mensagens e claro a marcar novos encontros. Saímos, conhecemo-nos melhor e acabamos por nos envolver intimamente. Tudo era perfeito, estávamos mesmo apaixonados e não era uma paixão normal, existia mesmo um clima intenso entre nós. Assumimos um relacionamento, mas ao fim de dois meses tudo mudou. -Graciete abre a boca para falar, mas fica apenas com um “O” perfeito.

- Deixa-me continuar Graciete. Tu sabes que eu sempre gostei de me vestir bem, gosto do meu corpo e gosto de andar com roupa que favorece uma mulher, sinto-me bem assim vestida porque me acho atraente. Tu sabes como são os homens não podem ver uma mulher bem vestida e a mostrar um bocado a perna que colam a olhar. O meu namorado claro ficava chateado com os olhares e com as bocas, ele gostava de me ver assim vestida, mas só para ele.

Os ciúmes começaram a aumentar e eram cada vez mais frequentes. Começou a comprar-me roupa tapada e larga para eu andar e eu aceitei, não me agradou a ideia, mas eu pensei que ele estava a brincar comigo. Mas ele estava cada vez pior, ia para todo o lado comigo não me deixava andar sozinha, controlava cada passo que eu dava. Mas eu gostava dele e aceitei, não queria criar conflitos. Um certo dia recebi um convite para ir actuar no teatro D. João V e marcaram um jantar para acertar as coisas. Claro que eu não ia vestida como uma rameira a um jantar daquele nível e por isso levei um vestido clássico, mas justo. Ele foi-me buscar ao restaurante e ficou possesso, naquele momento, percebi que já não sabia quem ele era.

Levou-me a casa e arrastou-me até à entrada, já dentro de casa ele deu-me um estalo. Disse-me coisas horríveis, que namorava com ele, mas que eu por trás só queria era outros. Enquanto ele gritava todas estas barbaridades ele bateu-me. Eu tentei defender-me, mas era impossível ele estava totalmente louco. Eu tentei explicar que foi apenas um jantar de trabalho, mas aí ele deu-me um estalo mais forte e eu caí de costas. -Célia deita a mão no pescoço e massaja-o, a sua respiração fica ofegante e incontrolada, Graciete tenta tocar-lhe na mão para lhe dar força, mas ele recusa – Só senti a pancada na cabeça, desmaiei. Quando acordei senti algo a escorrer pela cara, era sangue Graciete. A cabeça doía-me, não conseguia mexer o pescoço. Ao tentar levantar-me cortei as mãos nos estilhaços partidos que estavam espalhados no chão…

- E ele? - Graciete não se conteve.

- Ele já se tinha ido embora, o cobarde. Nem chamou a ambulância quando foi embora. Arrastei-me até ao telefone e consegui ligar para o 112. Fui para o hospital e lá fiz uma queixa contra ele. Não o queria mais perto de mim, aguentei muita coisa por gostar dele. Aquele acto foi a última gota de água, não queria estar com um homem daqueles. - Célia pára, e pela primeira vez deixa rolar pelo seu rosto uma lágrima – ele revelou o monstro adormecido que tinha dentro dele.

- O que lhe fizeram depois de teres apresentado queixa?

- Esteve preso apenas um domingo!

- Ele só ficou preso um domingo? -perguntou Graciete sem acreditar.

- Claro Graciete os pais dele são ricos e muito influentes. Achas que queriam que o seu filhinho querido passasse uns dias na cadeia? Claro que não! E também não queriam um escândalo para a família, por isso trataram logo de abafar o assunto. Ainda tiveram a lata de virem ao hospital ter comigo para me acusar. Disseram-me na cara que fiz isto tudo para ter dinheiro, porque eu sabia que eles não queriam estar envolvidos num escândalo principalmente de violência doméstica. Disseram-me ainda que isso não ia acontecer, que não iam deixar que uma interesseira como eu chegasse perto do filho deles. E deixaram bem claro para eu não me aproximar do filho deles, caso contrário quem ia para a cadeia era eu.

- Como é que isso é possível? Eles não perceberam que a vítima eras tu?

- Claro que não! Eles estavam mais preocupados com a reputação deles.

- Não dá para acreditar.

- Infelizmente ainda há pessoas assim, sem carácter.

- O que aconteceu depois?

- Depois disto nunca mais o vi e ainda bem que assim foi. Por o que me disseram, amigos que tínhamos em comum, ele fez uma viagem…

- Mas eles souberam o motivo desta partida?

- Não, ficaram surpreendidos com a partida repentina. Mas ele antes de partir disse apenas que nos tínhamos chateado e que ia trabalhar na empresa do pai no estrangeiro.

- Ainda bem! Ficou tudo em bem cada um para o seu lado sem saber nada um do outro.

- Infelizmente não foi bem assim.

- Ah? Mas o que estás a dizer? Ele não foi trabalhar para o estrangeiro?

- Foi, mas meio ano depois tornei a ter notícias dele e piores, mais do que estava à espera.

- Como assim?!

Um silêncio reina na sala. Célia abraça-se pensativa, por breves instantes refugia-se num mundo só seu, nos seus pensamentos. Graciete conhecia muito bem este ar, este jeito e sabia que Célia estava a arranjar a melhor forma de contar uma coisa muito séria.

- Eu continuei a conviver com os amigos que tínhamos em comum, menos vezes, mas não deixei de falar para eles. Num jantar estávamos todos a falar e inevitavelmente falaram dele. Todos recordaram-no como um menino dos papás que lidava com as piores companhias que se pode ter. Foi aí que fiquei a saber que ele esteve envolvido em drogas. Começou pelas mais leves como os charros depois consumiu as chamadas “rolhas”, seguiu-se a cocaína e por fim injectava-se.

- O quê? Mas tu sabias?

- Não, eu não queria acreditar no que eles estavam a falar, no fim todos pensaram que ele me tinha contado tudo. Mas não, aquele estupor nunca me contou nada. Com esta notícia fiquei sem chão para me amparar.

- Mas ele consumia quando esteve contigo?

- Esse foi o meu grande alívio, quando disseram que ele tinha estado numa clínica meses antes de me conhecer e que se encontrava completamente restabelecido.

- Amiga grande susto que apanhaste.

- Se esse fosse o susto maior!

- Como assim? Ainda há mais?

- Sim. Quando estava para vir embora o melhor amigo do meu ex acompanhou-me até ao meu carro e aí ele disse que aquele porco quando namorou comigo não resistiu e injectou-se e que tinha apanhado a sida.

- Ah? Célia, tiveste cuidado, não tiveste? Diz-me que sim.

- Tivemos sempre cuidado, mas eu confiava nele, ele era meu namorado e …

- E?

- Ele tinha feito anos e anos não são anos sem serem festejados com as pessoas que mais gostámos, não é?

- Sim…

- Nós fizemos um jantar de amigos e depois fomos todos para a noite. Nós estávamos completamente bêbados. Vieram-nos trazer a minha casa, mas eu e ele continuamos a festa.

- Continuaram a festa?

- Sim Graciete, fizemos o que se chama… como é mesmo o nome? -pela primeira vez Célia tinha um tom de voz irónico e brincalhão, este ar era o que caracterizava Célia e Graciete gostava dela assim.

- Oh, não sejas parva Célia!

- Ah! Lembrei, sexo!

- Parva, eu percebi. – Graciete sorri com o ar de Célia.

- E não sabia se tínhamos usado preservativo.

- Tu, o quê? Tu não sabias?

- Graciete, nós os dois estávamos completamente pedrados.

- Tu estás contaminada Célia? Como é que te descuidaste Célia? Já não és nenhuma criança tudo bem que ele era teu namorado…

- Graciete…

- E não sabias, claro que confiavas nele e não sabias é completamente normal, mas mesmo assim tens que ter cuidado quanto mais num seja para a…

- Graciete ouve-me! -Célia exalta-se e Graciete após um momento de desabafo que não conseguiu controlar cala-se.

- Célia, estás ou não contaminada?

- Isso interessa para a nossa amizade?

- Claro que não interessa, mas bolas Célia, estás ou não?

- Não Graciete, por uma unha negra, mas não, não estou contaminada.

Graciete que momentos antes se tinha levantado, agora senta-se como sinal de satisfação e de alívio e sem pressa sopra para expressar esse sentimento.

- O que aconteceu a seguir quando soubeste que o teu ex tinha a sida?

- Graciete, como achas que fiquei? Como achas que reagi? Comecei a insultar o amigo do meu ex, claro.

- Mas ele pensava que tu sabias de tudo!

- Como é que ficavas se chegassem à tua beira e te dissessem que o teu ex a pessoa que mais confiavas para além de ser um doído ciumento era toxicodependente e quando estava contigo injectou-se e que tu podes estar infectada? Como Graciete? Como é que tu reagias?

- Não sei, Célia!

- Pois não Graciete e espero que nunca saibas. É horrível. Depois ele olhou para mim como se eu fosse um bicho prestes a saltar para cima dele.

Pela primeira vez senti-me descriminada, sozinha.

- Ele falou mal de ti?

- Não, disse para eu fazer o teste o mais depressa possível e disse-me que eu podia estar descansada que não ia contar a ninguém nada sobre este assunto.

- Ainda bem, ele foi porreiro. E depois fostes logo fazer o teste e soubeste que não tinhas nada. Esqueceste logo o assunto e o teu ex de vez.

- Graciete muito sinceramente, só tu para seres tão prática. Achas que as coisas são assim?

- Assim como Célia? Isto é mesmo muito prático, só tinhas mesmo que ir fazer o teste.

- Não, não é assim tão prático. Eu levei um abanão, aquela notícia foi como se tivesse levado um estalo. Não tinha ninguém para me apoiar, se contasse alguém iam olhar para mim de lado.

- Não contaste a ninguém? Nem aos teus pais?

- Célia em que mundo vives? Os meus pais são da idade da pedra, achas que eles iam gostar de saber que a sua filha namorou com um drogado e que podia estar com a sida? Isso era demais para eles.

- Então o que fizeste?

- Andei duas semanas a correr para a clínica, mas sempre que chegava à porta perdia a coragem. Não conseguia, tinha medo que desse positivo.

Isolei-me em casa, só saía mesmo para os ensaios. Não me concentrava, eu própria tinha receio de tocar nos meus alunos por pensar que estava contagiada e que eles podiam ser contagiados. Evitava falar para eles frente a frente com medo.

- Célia, isso é uma parvoíce, toda a gente sabe que a sida não se contagia por esses meios…

- Bolas, eu sei Graciete, mas fodasse, eu estava com medo. Eu estava a renegar-me a mim própria, eu própria estava a ser consumida com o meu medo.

Eu lidei muito mal com esta situação. Eu sempre fui saudável e de um momento para o outro eu podia estar com uma doença transmissível. A minha vida ia estar completamente limitada.

Célia nervosamente puxa de um novo cigarro e queima-o fugazmente. A sua amiga continua sentada a olhar para ela e para o seu novo vício, pacientemente. Célia ao ver esta cena irrita-se mais, será que toda a gente pensa que uma situação destas é para ser levada assim com tanta calma?

Será que ninguém percebe a imensidão deste problema?

- Depois disto tudo fiquei farta da minha situação não aguentava mais a pressão que eu própria estava a fazer a mim mesma. Tomei coragem e fui à clínica pedi umas análises específicas para a sida, não me importei a forma como olharam para mim, se eu própria estava mal comigo não iam ser os outros que me iam afectar. Quando sai de lá, senti-me melhor, mas não menos preocupada. Fui almoçar à minha mãe, ela tinha-me chateado tanto para ir que não deu para recusar. Ela notou claro que se passava algo comigo e eu disse que tinha ido fazer umas análises, mas não disse para quê. O almoço foi bom, os meus sobrinhos estavam lá e foi junto deles que esqueci este problema, é incrível a capacidade que as crianças têm para libertar os adultos dos seus problemas. O pior foi depois, não queria que ninguém comesse ou bebe-se pelos mesmos talheres, copos e pratos que eu, por isso, fui eu que lavei a louça e esterilizei-a para não correr riscos.

- E não te disseram nada?

- A minha mãe perguntou, mas eu disse que era mais saudável e que eu própria fazia o mesmo na minha casa mesmo eu vivendo sozinha. Dois dias depois recebi uma carta da clínica, fiquei uns momentos em suspenso com medo de saber o resultado, mas quando ganhei coragem fiquei pior porque queriam que eu voltasse lá para fazer novamente o exame.

- Amiga isso deve ter sido muito doloroso, passares o que estavas a passar, para ter que passar pelo mesmo ou ainda pior.

- Foi exactamente o que pensei, parecia que o pesadelo não tinha fim, mas eu tinha que apressar esse fim e no dia seguinte fui novamente à clínica para fazer o teste. Uns dias depois a boa notícia chegou e finalmente a paz regressou ao meu lar. – Célia pela primeira vez desde que iniciou esta conversa irradia um sorriso alegre e feliz, Graciete também ela fica contente com este último gesto da amiga. Tudo tinha acabado em bem.

Para aliviar um pouco a tensão que se criou, Célia e Graciete decidem aproveitar o resto da tarde para ir ao cinema.

Já a caminho do shopping entre as conversas mais feministas de sempre, Célia dá um ar de riso traquina. Graciete ao ver este acto da amiga já espera tudo.

- Diz lá o que me queres dizer! -diz Graciete

- Eu?

- Sim, eu conheço-te muito bem, diz lá o que me queres dizer!

- Lembrei-me de uma coisa que talvez não queiras falar!

- Célia, começas-te agora contínuas!

- Está bem! Há poucos dias encontrei por acaso o Valter!

- O Valter? -pergunta Graciete intrigada.

- Sim!

- E como é que ele está?

- Está muito diferente fisicamente, mas o à vontade dele continua o mesmo a única diferença é que é professor e dos bons. -responde Célia a rir.

- Mas ele é professor de quê?

- Bem, ele foi para Belas Artes…

- Sim, eu sei, passa à frente!

- Calma Graci, tudo a seu tempo! Estás muito interessada!

- Não, estou só curiosa, é normal há anos que não o vejo!

-Está bem eu vou fingir que acredito! Mas o que eu estava a dizer! Ah sim, foi para Belas Artes para a área das cerâmicas…

- Oh a sério? Ele tinha tanto jeito para a pintura, se bem que ele também moldava muito bem o barro, as suas mãos eram suaves, carinhosas, com a certeza do que queriam…

- Pronto já chega, eu já sei que tu conheces muito bem a forma de ele moldar, mas ele continua a pintar e expõe algumas das suas obras.

- Ainda bem! Ele é professor em que escola?

- Sabes que não sei, ia perguntar mas ele estava com pressa e acabei por não saber!

Sem Graciete se aperceber Célia sorri, não quer dizer à amiga que o seu grande amor do passado trabalha no mesmo local que ela irá frequentar dentro em breve.

terça-feira, 19 de outubro de 2010

Capítulo 6

Hoje, Graciete quer andar em algo que já não andava há muitos anos. Em pequena adorava passear nele, pois o seu som que deixava sempre em alerta era único.

Foi até à zona do Infante e em pouco tempo começa a ouvir o inconfundível trabalhar do Carro Eléctrico.

Sentiu-se uma criancinha toda contente como se fosse a primeira vez que ia andar.

Entra e senta-se num dos bancos com paisagem para o Rio Douro.

Está encantada, por ali pode ver todo o cais de Gaia.

A sua paragem é em Massarelos, vai visitar o museu do carro eléctrico, coisa que antes nunca tinha feito.


Já depois do almoço Graciete vai até ao Centro Português de Fotografia. Antes de ir para França sempre que tinha oportunidade vinha até aqui ver as exposições ou simplesmente perder-se em livros de fotógrafos na biblioteca.

Inicialmente, este edifício teve como origem a tão conhecida Cadeia da Relação. No exterior, o famoso gradeamento nas janelas marca essa época assim como o brasão imponente de um dos lados.

Hoje, Graciete repara naquele Brasão com outros olhos, era magnífico o seu trabalhado, e regista-o com sua máquina.

O Centro Português de Fotografia conservou alguns dos espaços da antiga cadeia da relação, dando a conhecer ao público a sua história e também o seu funcionamento.

Apesar de Graciete ter visto, dezenas de vezes todo o seu percurso não se cansava de repetir e vai mais uma vez revisitar.

Graciete passa pelas enxovias que tinham nomes de Santos, pelas celas dos homens e das mulheres diferenciadas pelo chão de madeira, a sala do tribunal e a capela onde os presos ouviam a missa das celas. Graciete passa pela cela de um dos seus ídolos, Camilo Castelo Branco.

Pelo que consta, ali escreveu o livro "Memórias do Cárcere" e conheceu o delinquente Zé do Telhado. Nesta cela encontrava-se algumas das câmaras fotográficas da colecção de António Pedro Vicente, uma delas tinha sido utilizada por Tavares da Fonseca.

Existe uma sala com câmaras de 35mm entre elas as máquinas Leicas, outra sala especialmente predominada pela Kodak, mais exemplares de "jumelles" mostrando alguma história da Polaroid. Para além de tudo isto tem a possibilidade de ver algum equipamento de laboratório, alguns flashes e algumas fotografias.

No fim, Graciete vai até à biblioteca revê alguns livros e apura mais o seu conhecimento na fotografia.

O final de tarde já se aproximava, mas Graciete ainda dá um pulo por aquele edifico que hoje está diferente exteriormente.

Sem saber muito bem, se ainda tem a mesma função e se permitiam a sua entrada, entra no Clube Fenianos Portuenses.

O regime de entrada continua na mesma, ao fundo, na parede ainda está o enorme espelho dourado, ao canto a estátua que em tempos lhe metia medo e à sua frente a secretária com o porteiro.

- Olá, boa tarde!

- Boa tarde, olha quem é ela! -disse o porteiro.

- Pois, já algum tempo que por aqui não passava.

- Alguns anos!

- Cheguei alguns dias de França, e hoje aproveitei para vir aqui ver o ambiente!

- Fez muito bem!

- Ainda se lembra do meu nome?

- É claro!

O ritual ainda se mantém, enquanto o porteiro escrevia o nome de Graciete no livro ela espera pelo elevador.

Sobe até ao primeiro piso, abre a porta e vê o tão característico chão de madeira, de riscas claras e escuras, ainda estava, naquele que é o local de passagem, os sofás vermelhos e numa das paredes o espelho gigante. As portas que dão para o Salão Nobre estão aparentemente fechadas, mas Graciete ao ver se estão mesmo, consegue abri-las. Ao abrir é invadida pela felicidade. Está tudo igual, o palco recorda-lhe as grandes festas que passou ali, noites de Ilusionismo, festas de comemorações de dias especiais, noites de fados entre outros que faziam encher todo aquele amplo espaço.

Os famosos candeeiros dourados que imitavam as velas são o mais característico deste salão.

Como fica feliz ao ver aquele Salão.

Fecha a porta e desloca-se pelo corredor principal sob a passadeira vermelha. Passa pela sala de leitura, agora sala de internet, pela sala de tv onde passou algum tempo e pelo café. Este tem um ambiente calmo, óptimo para relaxar ou até mesmo para descontrair no bilhar, num espaço escuro.

O fim do corredor dá para o bar. Ainda se lembra de entrar e existir uma nuvem de fumo de tabaco, agora nem o cheiro existe.

Graciete dirige-se ao balcão para ver se tem o bolo que tanto gostava em criança, infelizmente já não havia.

Continua pelo bar fora e vai dar ao Salão Flamingo de tom rosa, aqui também se realiza algumas festas de menores portes.

No corredor para o Salão, encontra a entrada para a Biblioteca, hoje literalmente fechada. Só lá entrou uma vez, mas sabia muito bem o que lá existe, estantes enormes cheias de livros. Obras completas de Voltaire, José Régio, Fernando Pessoa, Eça Queirós... "A arte e a Natureza em Portugal" de 1902, "Camões e artes plásticas", entre outros.

Graciete muito sorrateiramente sobe até ao 2º piso. Não é um piso muito visitável, mas lá também existe um salão. Neste são realizadas algumas peças de teatro e exposições, hoje quase raras.

Existe mais cantos, mas Graciete conhece um que daria um museu. Hoje não sabe se existe, mas ela já viu as vestes dos grandes Cortejos de Carnaval que paravam a cidade do Porto.

Ao recordar Graciete questiona-se:

Porquê acabaram com esse cortejo?

Desce, as escadas do 1º piso ao rés-do-chão eram algo que tanto tem de fascinante como de perigoso.

Com os anos os degraus ficaram gastos e inclinados, agarra-se ao corrimão e desce a passadeira vermelha. Despede-se do porteiro e vai-se embora com uma melancolia.

Algumas coisas tinham mudado, mas Graciete sente que o verdadeiro espírito festivo e divertido tinha desaparecido.

Sente que aos poucos aquele Clube está a morrer.

Vai para casa e espera a chegada de Célia.

Toda compulsiva e energética Célia chega a casa de Graciete com a pica toda de ir para a noite.

- Anda lá, arranja-te! Vamos dar uma volta!

- Estás tola! Não me apetece sair.

- O quê? Nem penses! Antes íamos sempre e além demais já não saio à muito. Estou a ver que os ares franceses te fizeram mal, carago!

A verdade é que Graciete sentiu saudade desse tempo e com a insistência da amiga não perde a oportunidade.

Vão até a um bar do Porto. Ao som do ritmo de "Whigfield" as duas dançam no centro da pista de dança.

Mas Graciete já não está habituada a estas andanças e um tempo depois as duas param para tomar uma bebida. Enquanto estão ao balcão a tomar o seu copo, dois rapazes bem estruturados aproximam-se delas para meter conversa. As duas não têm quaisquer tipos de problemas, mas Célia já consumada pela poção deixa-se levar e volta à pista de dança onde arrasa com toda a sua expressão corporal.

A conversa de Graciete com o tal rapaz que nem lhe percebeu o nome, por causa dos decibéis a mais, está a ser ao que se chama uma grande seca. Ela não está a acha-lo nada interessante. Observa Célia e o seu estranho parceiro de dança a roçarem-se um no outro, o ambiente quente, o calor que se sentia e a maneira sensual de se tocarem, fez lembrar-lhe aquela noite que teve dias antes.

Graciete começa a achar que vai sair dali sozinha da maneira que as coisas vão... além do mais à sua volta está completamente rodeada de bêbados que caem pelos cantos.

A verdade é que elas saem dali e ainda vão espreitar outros bares, o cenário é sempre o mesmo.

Já de madrugada regressam a casa, a noite de breu com a lua de companheira estava igual a muitas outras noites que passaram juntas. Mas com os anos as coisas tinham mudado.

Pelas ruas vêm sem-abrigos, drogados e pior que tudo assistem a um assalto a uma tabacaria. Estão chocadas, assustadas com toda aquela violência visual e a passo ligeiro chegam a casa de Graciete em silêncio.

- Tu viste bem aquilo?

- Esta é a realidade que sempre existiu, mas agora mais que nunca acentuada. O melhor é esquecermos e deitarmos.